quarta-feira, 16 de setembro de 2015

SALTO ALTOS





Os sabiás cantavam, insistentemente, a lhe despertar.
Ela abriu os olhos, viu seu travesseiro molhado de lágrimas,
Choradas a noite, em sonhos repetidamente dolorosos.
Levantou-se amargurada, tomou um banho demorado,
Lavando todas as marcas da noite mal dormida, mal vivida.
Vestiu-se com esmero, pintou sua boca de vermelho sangue,
Calçou seus sapatos de salto altos e saiu sem destino certo.
Andava pelas ruas com um discreto sorriso nos lábios,
Olhava as pessoas que por ela passava, de forma amigável.
Tentava adivinhar suas vidas, seus penares, suas alegrias.
Cantarolando, músicas para si mesma, observava sua volta.
Jardins bem cuidados, flores por toda parte, ruas limpas.
Tudo era bonito, o ar era refrescante e as pessoas cordiais.
Vez por outra, parava frente a uma vitrine só para observar.
Nada queria, de nada precisava, nada que estivesse a venda.
Era só um ato de sua opereta um tanto sarcástica e irônica.
Entrou num café dos mais elegantes e com altivez sentou-se.
Era a única sozinha em uma mesa, sem se abalar pegou o menu.
Fingiu estar estudando-o, mas já sabia de antemão o que queria.
O garçom correu a atendê-la, antes de outros que a antecederam.
Talvez pensasse encontrar alguém numa constrangedora solidão.
Ela lhe lançou seu sorriso mais cativante que o deixou espantado.
Com segurança e sem dúvidas, ainda sorrindo, fez seu pedido:
Por favor, apfelstrudel de maçã e um cappuccino com chantilly.
Saboreou tudo com mansidão, como fosse sua última ceia.
Já na rua, lembrou-se de todos os olhares lançados, os cochichos.
Riu-se devagar e pensou que deveria fazer isso mais vezes.
Mas hoje era um dia especial, comemorava seis meses na sua casa.
Há seis meses sabia que nunca ninguém mais lhe diria rudemente:
“A casa é minha e eu quero que vás embora”. Isso jamais se repetiria.
Estava na sua casa que um dia largara e na vida deixada para trás.
A vida fora perdida, pois já não tinha forças para recomeçar do zero.
Jogara fora todo um trabalho construído ao longo de vinte e seis anos.
Mas o fizera por amor, talvez um amor ingênuo, irracional, mas amor.
Agora de volta a sua casa, abre a porta onde o silêncio a recepciona.
Encosta-se, por uns minutos nela e sente o toque frio da madeira.
Olha a sua volta, guarda o sorriso e joga os sapatos de salto ao lado.
Tira a roupa e a pendura para outra ocasião, lava o rosto tão feliz.
Veste seu pijama de desilusão e vê refletido no espelho olhos sem cor.
Talvez amanhã repita esse passeio, talvez amanhã recoloque a máscara.
Talvez depois de amanhã o faça novamente, tornando isso uma rotina.
E essa mentira tantas vezes repetida, talvez um dia se torne uma verdade.






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