quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

O dia em que morri



Na penumbra do corredor cinza por onde as janelas só traziam mais escuridão, eu caminhava em passos largos e trêmulos. Andava, olhando as portas, a procura do número que queria e temia. Naquele local gélido e solitário, só a minha respiração era ouvida. Numa da mão trazia minha mala e com a outra mexia em meus cabelos somente para não deixa-la a longo do corpo.
Agora diante do único obstáculo que me separava do desconhecido, não sabia o que fazer. Ordenava aos meus pensamentos, aos meus sentimentos e a toda minha alma: Sê forte! Forte? Forte contra o quê? O que me esperava? Eram verdadeiros meus temores? Uma vida inteira se passou enquanto minha mão descia de meus cabelos e se agarrava à maçaneta. Foi preciso outra vida para que eu pudesse girá-la abrindo a porta.
O branco agressivo, em contraste com o cinza do corredor, me paralisou e meus olhos se fixaram em outros olhos ali na minha frente. Olhos opacos, sem vida, sem razão de ser e por defesa, deixei de encará-los e baixei meu olhar para seus lábios. Não havia cor, rachaduras molduravam um tímido sorriso de dor. Não dessas dores de chorar, de gritar, de tomar remédios, dor que vem de dentro e vai destruindo o espírito até consumir também com o corpo. Dor que não dói porque amortece todos os sentidos até sua própria dor. Eu lhe sorri em retribuição. De qualquer jeito, joguei minhas lágrimas e meu grito para dentro de mim e, lhe sorri. Meus olhos ainda vagavam pelo seu corpo enquanto eu me mantinha congelada no umbral da porta.
Vi seus ralos e loiros cabelos espalhados desordenadamente pelo travesseiro. Seu braço direito estendido ao seu lado deixava ver sua mão tão pálida quanto à rudeza dos brancos lençóis. Pude ver as veias muito azuis de sua mão, as unhas arroxeadas e estas eram as únicas cores de tudo que via. Larguei a mala ali mesmo na porta e fui abraçá-la temendo que se desmanchasse ao meu simples toque. Beijei sua testa e a enlacei em meus braços. Não chorei. Fiquei ali abraçada ao seu corpinho frio passando todo o calor que tinha comigo e meu único pensamento era que nada nem ninguém iria tirá-la de mim. Brigaria com Deus, com a morte e quantos mais aparecessem a minha frente, mas, NINGUÉM iria tirá-la de mim.
Aos poucos fui me afastando e ela na sua voz quase inaudível me disse: estou bem, mãe. Sorri novamente em concordância e fui ouvindo as coisas que tinha para me contar. Falava com voz macia, entrecortada pela dificuldade em respirar, e eu petrificada com o horror do seu estado, ouvia a tudo como se tudo fosse nada. Sem saber de onde saia minha força, conseguia ouvir, sorrir e acariciar sua mãozinha. Quando de repente, já esgotada parou de contar sem ter tudo contado. Fiquei ainda alguns instantes só olhando-a e fui tomar banho.
Tão logo a porta se fechou atrás de mim, minha armadura virou pó, o sorriso se transformou numa careta e as lágrimas escorriam abundantemente pelo meu corpo. Vagarosamente tirei minha roupa e fui esconder minha dor no barulho da água que caia do chuveiro. Rezei até ficar rouca enquanto a água tentava inutilmente lavar o meu desespero. Pedi a Deus que não fizesse com que eu enterrasse uma filha minha. Pedi a Deus uma cruz mais leve. Pedi a Nossa Senhora que me desse à coroa de espinhos, o açoite, a traição ou a morte, mas que não me desse à dor de entregar-lhe minha filha. Lembrei-me da alegria da sua chegada, dos primeiros passos, do seu sorriso aberto, dos seus olhinhos de chinesinha, da responsabilidade dos seus atos, da integridade do seu caráter, das noites sem fim de estudos, da sua paixão pelo flamengo, pelo nosso acordo de só poder faltar à aula no dia seguinte da apresentação do Oscar, sua outra paixão. Lembrei de todas as suas lutas, de todas as suas vitórias, de todas as suas mágoas que sempre tentava esconder de mim e que raramente tinha sucesso. Lembrei do seu jeito quietinho de ser, da meiguice, da solidariedade, lembrei, lembrei,lembrei, lembrei de tudo que nunca esqueci. E no meio de tantas lembranças, lembrei de novamente pedir para mim a punição: “Faça de mim o que Quiseres, mas livre minha filha de todo o mal.”.
Depois disso, juntei os cacos do que fora eu e retornei ao seu lado, pronta para guerrear contra o invisível, o inimaginável e vencer a todos. Por três dias e por três noites fiquei de vigília até convencer-me que o mal havia sido afastado. Após este tempo de guarda, as coisas foram lentamente tomando seu lugar, mas a ferida deixada no meu peito nunca cicatrizou e ainda tenho e terei para sempre a marca do dia em que morri.

Carmen Mattos

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...