quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Estreiteza

O lago estava cheio. A água transbordava por suas encostas, como sua felicidade transbordava por seus poros. Tudo era sereno... a paz e o amor reinavam.
Um dia, sem qualquer explicação, a doçura mansa foi evaporando-se e enchendo-a de seu líquido claro.
Por vezes, era tanto e com tamanha força, que escorria de seus olhos. Não mais como o néctar da natureza, mas salgado como a fúria de Netuno.
Sem nada compreender, ela olhava incrédula para a secura a sua volta. Tudo era estreiteza.
Os sentimentos se encolhiam, o absurdo tomava seu lugar, as folhas caiam e os pés sangravam.
O chão se abriu nas fissuras da aridez de tudo.
Sem saber voar, ela caiu de joelhos nas profundezas do desconhecido.
A água a trouxe de volta, velejando aos ventos da sorte. Acordou no salgado das lágrimas de seus olhos que se derramavam sobre a areia fina.
Encheu o mar com a abundância de seu sofrer e o mar a encheu na abundância de seu amar.
O equilíbrio se fez presente.
A gota que um dia fora, hoje resplandecia entre gotas prateadas da lua cheia.
Sentada na areia molhada, sentia a brisa a esvoaçar seus cabelos e a espuma branca envolver seu corpo. Ela ali estava, contida numa miscelânea de plenitudes infinitas.
Tudo era sereno, manso e harmônico nas ondas do lago que se fez pranto e no pranto que se fez mar.




sábado, 26 de dezembro de 2015

Tormenta


Aparecestes assim tão de repente
Como um vendaval em uma tempestade de verão
E derrubastes toda a minha estrutura.
Transformastes meu céu azul
Num cinza repleto de dúvidas.
Mantive minha certeza 
E te contei sobre o meu mundo.
Disse-te que jamais havia sido tão feliz.
Na verdade realmente jamais havia sido tão feliz...
Não te menti
Mas também não te disse a verdade.
Desdobrei a história em mil pedaços
E deixei ao chão para juntares.
Te contei verdades sobre o teu caráter.
Te contei mentiras sobre o meu.
E assim,
Brincando de esconde esconde com o acaso
Protegi-te da tempestade criada por ti
Quando apareceste tão de repente
Como uma tempestade em uma noite de verão...

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Desenganos

Ele era o barco, ela a vela.
Ele ventania,
Ela calmaria.
Ele era o arco, ela a sela.
Ele liberdade.
Ela saudade.
Ele era o marco, ela a bela.
Ele tormento.
Ela, lamento.
Ele era o parto, ela o ato.
Ele solidão.
Ela canção.
Ele era o mito, ela o dito.
Ele ninguém.
Ela alguém.
Ele era o corte, ela a sorte.
Ele calmaria.
Ela ventania.
Ele era a solidez, ela a nudez.
Ele saudade.
Ela liberdade.
Ele era o caçador, ela o amor.
Ele, lamento.
Ela tormento.
Ele era a asa, ela a casa.
Ele canção.
Ela solidão.
Ele era a vingança, ela a herança.
Ele alguém.
Ela ninguém...


Os pardais



Sentada na areia fina, com as pernas dobradas e envolvida pelos seus braços, ela sentia a água salgada molhar seus pés.
Olhava o mar escuro, pouco a pouco, dourar-se com os primeiros raios de sol que nasciam no horizonte.
A brisa fria arrepiava sua pele e esvoaçava seus cabelos. Sentia toda a força do universo a lhe envolver.
O cheiro forte da maresia, entrava por suas narinas e alojava-se dentro de si. Nada era mais reconfortante!
Sentiu sua vida e viu o quanto era feliz. Tivera tudo. Perdera algumas. Mas o saldo sempre fora positivo. Sentia-se abençoada.
Nada nem ninguém, nunca pudera lhe tirar a força de guerreira, a calmaria de mulher ou a dignidade de ser humana. Isso lhe pertenceria até o último dia de sua existência terrena. Assim seria!
Na praia deserta ouvia o piar dos pardais, exclusos de beleza e voz. Sentiu-se um deles. Tão majestosos na sua total falta de atrativos. Eram sobreviventes... como ela.
Lágrimas escorreram de seus olhos, na fugaz saudade daqueles que se foram. Por eles teria dado a vida. Os amara de forma integral e incondicional.
Com o dorso da mão, secou uma lágrima e depois outra. Negava, nesse momento, o luto que vivera. A perda era deles e não sua. As carpideiras lamentavam por eles e não por ela. Não mais permitiria a troca de valores.
Levantou-se e, como Narciso, foi olhar seu reflexo na água. Tinha o brilho que só é permitido as pessoas em paz. Nem mesmo as imagens distorcidas e os olhos enevoados a suas costas, poderiam macular sua vida. O tempo passava para eles e regredia para ela.
Perdera tudo que tivera, exceto a honradez. Deixada ao léu, seus filhos e amigos foram sua única base de reconstrução. Essa base forte e segura, fez dos cacos um castelo onde agora ela morava.
Sorriu, onde antes houvera lágrimas, e levantou-se. Deu as costas para a imensidão da água e como uma gota seguiu seu caminho sabendo que tudo volta para o mar. 

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Espera sem fim


Olho para ti
E tento desvendar toda a tristeza que habitou a tua alma.
Tento encontrar o motivo de toda a bondade que te consome, 
Agora.
E assim, 
No meio de procuras sem fim, 
Pergunto-me,
Inquieta,
Os motivos pelos quais não desististes da vida.
Tua infância difícil,
De lar em lar,
Sentado na beira da janela 
Esperando por aquele que nunca viria.
Uma cena de filme
Ou a realidade que tanto te afligiu.
Com marcas
Cicatrizes que jamais sumirão de tua alma
Vejo a mesma criança assustada de outrora.
Que continua sentada
Em frente à janela
Esperando por aquele que jamais retornará...

Cela


Por diversos motivos eu sofri. 
Vivi uma realidade que não me pertencia.
Mas acreditava que era tudo o que eu merecia.
Reclusa, 
Enquanto assistia o mundo parar,
Meus pés descalços 
Sangravam em cima da areia movediça sem fim
E assim,
Passei meus dias.
Sem nada a esperar
Apenas a temer.
E eu tive medo...
Eu tive medo da chuva que caía do lado de fora da janela de minha cela
Esta cela que construístes para me abrigar
Eu temia me desmanchar 
Eu temia deixar de existir
E temendo a inexistência, 
Apaguei-me dia após dia.
Desbotei o sorriso do rosto
E vesti-me de solidão.
Jogada ao léu
Dentro da cela que teu egoísmo criou
E dentro do universo vazio
Que consome a tua alma...


domingo, 6 de dezembro de 2015

ONDE MORA A INIQUIDADE

Com uma força sobrenatural, ela tentava abrir o grande portão de ferro.
Depois de algum tempo, quando gotas de suor brotavam em sua fronte,
Ouviu-se o rangido das dobradiças que cediam, e o portão foi aberto.
Não havia nenhuma vegetação, nada crescia naquele terreno árido.
Não se ouvia o canto dos pássaros, porque lá não haviam pássaros.
Foi andando por entre as pedras, algumas ainda machadas com seu sangue já seco.
Elas lhe levaram ao tempo em que cavara aquela terra com as próprias mãos.
Tempos estes, em que seu coração estava ferido mortalmente pelas ilusões perdidas.
A sua pele em chagas gotejava o sangue com que sua alma regava a terra.
Assim foi passando, um por um, os túmulos feitos em meio a inimaginável dor sentida.
Em meio ao total silencio, escutava sua respiração mais ofegante a cada passo.
E ali estavam eles, lado a lado, em perfeita simetria da traição e deslealdade.
As pedras a sua volta, continham seu sangue e pedaços de seu corpo.
Tudo já estava se decompondo, mas seu coração reconheceu os pedaços que lhe faltavam, ali caídos.
Sentou-se no chão, entre os dois túmulos da ingratidão e pôs-se a pensar.
O que havia feito para ter merecido tamanha maldade daqueles que tanto amara?
Jesus fora traído com um beijo, ela o fora entre sussurros que não ouviu.
Tamanho era o seu amor por eles, que nunca imaginou que tramavam contra ela.
E num “Até tu, Brutus?”, ela se viu sem chão, sem amor e despida de tudo.
Agora ali sentada, sem lágrimas em seus olhos, parecia-lhe ouvir gemidos.
De um lado, os gemidos eram chorosos de alguém que perdera a “mãe”.
Não tinha mais com quem conversar e contar suas desventuras da vida.
Na mediocridade de sua vida sem sentido, ria-se dos sofrimentos alheios.
Com maledicência falava como um sábio diante dos ignorantes fariseus...
E um som seco se ouviu e um corpo caiu, a pele de inocentes era cortada.
Com a mesma insensibilidade tudo explicava, sem entender que o mal habitava seu espírito.
Era causa e consequência de tudo o que ocorria a sua volta, mas ria-se.
Do outro lado os gemidos eram mais tênues, mas não menos sofridos.
A soberba e a prepotência ainda existiam naquele ser carcomido pelo mal.
Exibia seu pobre troféu, fruto das mentiras e crueldades: uma galinha de Angola.
Mas ela conhecia bem quem enterrara e sabia como era difícil manter-se assim.
Os dias eram intermináveis e as noites longas para que pudesse esquecer.
Como esquecer o inesquecível? Ela estava em todos os lugares a sua volta.
Levantou-se e foi em direção ao grande portão de ferro, fechou-o com mansidão.
Encostou-se nele e deixou suas lágrimas, então, rolarem e sorriu para o passado.
Nada tinha ali de seu, senão as cicatrizes das desilusões em seu frágil peito.
Mas eram somente cicatrizes, não mais dores ou os gemidos que ouvira.
E a guerreira ergueu sua espada em direção ao céu, cercada pelos corpos
Um dia amados na meiguice da paixão e hoje abatidos, inertes e solitários.


FAXINA DE NATAL

Todos os Natais da minha infância e adolescência tinham a mesma característica.
No início de dezembro havia a faxina de Natal e ela era rigorosa.
Passava-se primeiro o escovão (de ferro) com palha de aço por todo o chão, para ser retirada a cera velha,
Depois passava-se cera nova e o mesmo escovão, agora com uma flanela, dava o brilho.
Tudo parecia um espelho de tão brilhante e os olhos exigentes de minha mãe, eram severos.
Tirávamos as cortinas, as púnhamos para quarar e depois eram lavadas e passadas cuidadosamente.
As toalhas de linho eram todas engomadas com uma mistura feita por minha mãe de água com farinha de trigo, cozida.
Os móveis arrastados para que nem um grão de poeira restasse. Depois recebiam um lustro que deixavam nossos braços dormentes.
Nenhum vidro ou espelho poderia estar senão, impecável.
Depois iniciava-se a arrumações festivas, com sua árvore de Natal e Presépio, imaculadamente arrumados.
Os presentes eram depositados aos pés da árvore, um para cada um. Nada da fartura dos dias de hoje
As 9 horas tínhamos a ceia de Natal, com o tradicional Peru, maionese, arroz de forno, castanhas portuguesas cozidas, algumas nozes e uma farta mesa de doces.
Perto da meia noite, todos caminhávamos em direção a Igreja para a celebração da Missa do Galo que começava, pontualmente, a meia noite.
Assistíamos com o coração acelerado pois só na volta abriríamos o presente.
Assim cresci, sem nunca questionar essa rotina estabelecida pelas famílias da época.
São boas lembranças, lembranças se que se confundem com a minha vida.
Era Deus me preparando para o que haveria de vir num futuro, então distante.
Hoje, estou em faxina de Natal. Já foi passado o escovão com a palha de aço, retirando toda a cera velha que havia em minha vida.
A cera nova começa a ser espalhada e logo chegará o momento de dar-se o lustro.
As roupas estão quarando ao sol, para retirar o amarelado do tempo em que ficaram guardadas.
E assim minha vida vai recebendo a” faxina de Natal”, tal qual outrora.
E tudo ficará perfeito e todos ficarão felizes com suas bonecas de pano e carrinhos de madeira.
Também, minha vida, também está sendo meticulosamente arrumada para dias melhores.
Para se fazer a faxina de Natal, antes é preciso tirar tudo do lugar e só então começar a limpeza.
Para fazer a faxina da vida, primeiro é preciso tirar tudo do lugar e só então começar a recomeçar.





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